A um mês de chegar aos 81 anos, a cineasta Adelia Sampaio conta uma vida marcada por rupturas, coragem e humor, com um papel histórico que inspira a produção cultural do país até hoje.
Em 1984, tornou-se a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, com Amor Maldito, um filme que ousou retratar um relacionamento entre duas mulheres em plena ditadura militar e enfrentou censura, machismo e ausência total de financiamento.
De Minas ao cinema russo
Nascida em Belo Horizonte, a cineasta passou parte da infância em um abrigo em Santa Luzia do Rio das Velhas (MG). Por determinação da patroa, a mãe, Guiomar, que era empregada doméstica, entregou a menina à instituição, aos 7 anos. Hoje, Adelia revisita sua memória com uma mistura de franqueza e ironia.
Eu fui criada num asilo, no interior do interior, sem nem saber que cinema existia, lembra.
Guiomar tinha se mudado para o Rio de Janeiro, com as duas filhas, para morar e trabalhar na casa da patroa, deixando para trás uma situação de extrema vulnerabilidade. A virada simbólica permanece na imagem que Adélia ainda guarda: A primeira coisa que eu vi foi o relógio da Central do Brasil, recorda.
Entretanto, a patroa não aceitou que a empregada trouxesse as meninas para sua casa e impôs a separação.
"A patroa da minha mãe colocou a minha irmã no colégio interno, e minha mãe teve que me deixar em Minas novamente. Lembro bem das belas roupas que a patroa da minha mãe comprou na Loja Sears, na Praia de Botafogo, para que depois eu fosse para o asilo.
A cineasta morou até os 12 anos no abrigo, e sua reunião com a família e a entrada no cinema tiveram a ver com sua irmã mais velha, Eliana.
''Foi minha irmã Eliana, que trabalhava como revisora de filmes russos em uma distribuidora da Cinelândia, no centro do Rio, conseguiu convencer minha mãe a deixar o trabalho em casa de família e me buscar em Minas'', conta emocionada.
De volta ao Rio de Janeiro, bastou uma sessão de cinema com a irmã para Adélia mergulhar em um novo mundo:
"Eliana me levou com 13 anos ao cinema pela primeira vez, para assistir a Ivan, o Terrível, de Sergei Eisenstein. Eu saí encantada, feliz da vida, e falei: Eu vou fazer isso. Riram da minha cara, claro. Mas eu fiz, relembra.
Primeiros filmes
Adélia começou no cinema como recepcionista, nos anos 60, na Difilm [Distribuidora de Filmes Ltda.], que funcionava como uma produtora e distribuidora de filmes independentes no bairro da Cinelândia e tinha como sócios grandes nomes do Cinema Novo como Glauber Rocha, e Leon Hirszman. Sua rotina, entretanto já envolvia uma série de tarefas que são consideradas do escopo da produção.
Entre trabalhos administrativos em distribuidoras e laboratórios de pós-produção, Adélia aprendeu o ofício pela prática, pelo improviso e pela persistência.
Ela conta que carregava negativos dentro de um embrulho de jornal e os guardava na geladeira azul de casa, onde também congelava carne: Me ensinaram que o negativo não estragava assim, então eu guardava tudo ali.
Foi aos 22 anos que dirigiu Denúncia Vazia (1979), seu primeiro curta, sem recursos mas com a rede de confiança e afeto construída no meio cinematográfico.
Já casada e mãe, ela montava seus filmes de madrugada, quando estavam disponíveis as cabines que hoje são chamadas de ilhas de edição.
A amiga e montadora Helza Fialho, que tinha acesso ao equipamento profissional, encorajava. Vamos fazer de graça. Arranjo champanhe, dizia a amiga, segundo Adelia.
Pioneirismo
A ascensão da cineasta se dá em um contexto de quase completa ausência de mulheres negras atrás das câmeras. Quando questionada sobre as barreiras enfrentadas, ela resume com contundência:
Ser mulher, negra e cineasta no Brasil é ser bastarda três vezes. Deus deve ter olhado e dito: É dela
Ainda assim, sua filmografia nasce justamente do lugar que a sociedade insistia em lhe negar: o da autoria, da assinatura, do controle narrativo.
No início dos anos 1980, em plena vigência da censura na ditadura militar, Adelia decide filmar Amor Maldito. O roteiro é inspirado em um caso real que havia ganhado as páginas policiais: um suposto romance entre duas mulheres, em que uma delas é encontrada morta após um suicídio. A imprensa transformou o drama em espetáculo moralista, criminalizando a sobrevivente.
Adélia mergulhou nos arquivos, conversou com envolvidos, escreveu a primeira versão do roteiro com o jornalista e escritor José Louzeiro. Ela sabia exatamente a rejeição que enfrentaria.
Eu tinha certeza de que ninguém ia me dar dinheiro para dirigir um filme sobre lésbicas, suicídio e ainda com uma mulher negra atrás da câmera. Então, fomos com a cara e a coragem.
Sem financiamento da Empresa Brasileira de Filmes S.A. (Embrafilme), empresa pública que apoiava o cinema brasileiro e foi extinta em 1990, o longa foi realizado com apoio voluntário de atores, equipe técnica e amigos.
Para que fosse distribuído, Adelia acabou aceitando que Amor Maldito fosse classificado como pornochanchada categoria que, nos anos 1970 e 1980, garantia acesso às salas de cinema, apesar do rótulo estigmatizante.
Eu não tinha medo de ousar. Se o jeito de botar o filme na rua era esse, eu ia botar.
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