Artigo escrito pelos professores Reginaldo e Sandro traz uma reflexão sobre a vida em meio a pandemia
"Vivemos numa era que 'esperar' se transformou num palavrão". A frase é da jornalista e escritora Laura Potter¹ . Uma das características da modernidade é sua condição "instantânea". A vida em sua cotidianidade é pressionada pelas exigências da compressão temporal em que atuam a produção e o consumo. Não há tempo a perder, "Time is money". Nesta condição, esperar é um martírio. Noutra direção e para muitas pessoas, a espera representa um momento de fruição, de prazer, de frear os impulsos e excessos sobre a vida na correria do dia a dia. As salas de espera dos consultórios, das empresas, dos esteticistas, entre outros locais podem ser um bom espaço e tempo para refletir, ler um pouco, responder as mensagens dos amigos e familiares. Assim, o tempo de espera pode se apresentar como um luxo.
A quarentena instaurada mundialmente em função da pandemia do coronavírus não se impõe a todas as pessoas, sociedades e comunidades da mesma maneira. Alguns estão em suas confortáveis residências, em casas de campo, em fazendas, em sítios, ou mesmo em suas casas de verão, curtindo a piscina em seu espaço de lazer. Porém, milhares de seres humanos encontram-se apinhados em barracos, desprovidos da privacidade de um quarto, com dificuldade de acesso a alimentos suficientes, na medida em que neste contexto pandêmico, com as aulas suspensas, as crianças não têm mais o lanche da escola. Isto significa que aparentemente o vírus é democrático e afetaria a todos, mas na realidade ele é autoritário, pois vai agredir diretamente em maior escala o corpo e a vida dos menos favorecidos socialmente.
Noutra condição, mas que parte do pressuposto de que o sentido da existência se constituiu majoritariamente pela plena inserção na lógica da produção e do consumo, há setores da sociedade que atribuem sentido à existência a partir de tal lógica. Sentem-se emocionalmente abalados, inconformados com as medidas de isolamento social propostas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), bem como, com alguns Prefeitos e Governadores que tomam medidas de acordo com as orientações de tal órgão. Como considerar de forma adequada questões desta natureza que se apresentam impactantes na dinâmica da vida individual e social?
Se por um lado a ciência permitiu uma infinidade de melhoramentos na vida das pessoas, sobretudo ao longo do século XX, por outro lado, as apostas excessivas na racionalidade científica serviram de base para atrocidades contra a humanidade, como exemplo, as práticas nazistas na Alemanha de Hitler da primeira metade do século XX. É importante ter presente, que o Führer foi eleito pela maioria dos alemães como aposta para salvar a economia. Na crença em torno do discurso da existência de um inimigo comum da nação. Na emoção de ver à frente de seu país um nacionalista, última garantia contra os males da velha política. Contra os comunistas. Contra os socialistas. Contra os judeus, os homossexuais, os deficientes, os fisicamente decrépitos e, que não contribuiriam com a construção do III Reich.
Ou seja, a ciência é fruto dos interesses majoritários e dos cálculos de poder de determinados grupos que controlam a dinâmica social e, neste sentido é preciso refletir e procurar compreender os jogos de poder e os interesses implicados em certas manifestações destes grupos sociais. Nesta direção, constatam-se grupos de interesses de viés marcadamente autoritário solicitando a volta do Regime Militar. Este contingente alicia significativas parcelas de ingênuos úteis, que como ventríloquos intensificam o apelo pela volta dos militares. Outros, exigindo sob argumentos econômicos o fim do isolamento social, apostando que emissoras de televisão têm potencial para criar notícias falsas sobre a pandemia de coronavírus, desconsiderando informações dos mais distintos povos e países. Fazem carreatas, defendem o fim das medidas orientadas pela ciência e adotadas por governadores e prefeitos e, espalham fake news.
Porém, o vírus não respeita barreiras geográficas, são as irresponsabilidades de lideranças políticas, associadas às precárias estruturas de saúde pública (na medida do contigenciamento dos recursos orçamentários a serem aplicados na saúde - ver a Emenda Constitucional nº 95 de 15/12/2016) e às desigualdades sociais que garantem a disseminação massiva do vírus, bem como a letalidade que lhe é inerente. O impacto da pandemia se manifesta no espectro econômico, social e político em âmbito global, nacional e local. Muitas questões derivadas destes impactos que se apresentam, seguem sem respostas neste momento, todavia, até aqueles que duvidam do vírus "esperam" da ciência a solução, os medicamentos, a vacina. Aqui se manifesta um dos paradoxos do nosso tempo que também se caracteriza pela desvalorização, pelo preconceito em relação ao fazer científico e, ao mesmo tempo, a crença de que neste cenário somente a ciência tem condições de apresentar uma solução adequada.
Muitos aguardam a volta da "normalidade", mas, será que o normal será o mesmo? Voltaremos à correria cotidiana da produção e do consumo no qual gastávamos de forma irrefletida nossas vidas? Retornaremos tão ou mais agressivos na destruição do meio ambiente para garantir nossos padrões de consumo? Continuaremos a banalizar a vida consumindo a nós mesmos e os outros a partir de nossas relações extremamente produtivas?
É possível virar as costas para o luto alheio, não para as marcas deixadas por seres que se pretendem "evoluídos", mas que priorizam salvar um modelo econômico ao custo dos amontoados de cadáveres por todos os lados. Não há mais tempo para aguardar os cientistas, pois, tudo flui no tempo de esperas, e mais, tudo se contamina a partir da cegueira. Aos poucos, o que resta de humano na humanidade luta para sobreviver.
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¹The Guardian - English Patience - Observer Magazine, 21 out. 2007.
AUTORES
Reginaldo Antonio Marques dos Santos - Professor de Sociologia. Membro do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas (CNPq.)
Sandro Luiz Bazzanella - Professor de Filosofia. Líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas (CNPq.) Professor do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado
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