O trabalho de Jaque, formada em cinema pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), provoca reflexões sobre as relações de gênero e os problemas sociais no Brasil.
A seguir os principais trechos da entrevista à Agência Brasil.
Agência Brasil: Como começa seu interesse por consertar as coisas?
Jaque Conserta: Eu passei boa parte da minha infância dentro de uma loja de materiais de construção. Minha avó era dona de uma, eu ia passar as férias com meu pai, que repassava os cuidados para a minha avó, e ela me levava para a loja. Então, as minhas férias eram dentro do depósito dessa loja de materiais de construção. Os elementos [equipamentos, ferramentas e peças] acabaram entrando no meu universo.
Mas eu considerar a me dedicar a isso demorou bastante. Tem nove ou dez anos só, já estava com 32 anos. Esse trabalho como Jaque Conserta foi a forma que encontrei de aliar a minha militância e a minha geração de renda. Meu trabalho é ajudar os processos de autonomia das mulheres.
Agência Brasil: Você diria que existe alguma dinâmica social que afasta as mulheres dos serviços de consertos e reparos? Falta aos pais ensinarem às filhas sobre isso?
Jaque Conserta: Sim, com certeza, existe claramente uma dinâmica social que empurra as mulheres para longe de tudo o que é considerado técnico ou mecânico. A divisão sexual do trabalho não desapareceu ela só ficou mais elegante, mais disfarçada.
Desde cedo, meninos ganham ferramentas, e as meninas ganham panelinhas. Meninos são incentivados a desmontar as coisas, meninas são incentivadas a mantê-las limpas.
E, sim, faltou e falta aos pais ensinarem esse tipo de habilidade às filhas. Não porque as meninas não sejam capazes, mas porque há uma crença estrutural de que isso não é coisa de mulher. Estimularem as meninas a se interessarem por esse universo das ferramentas. A ausência disso faz a maioria das meninas crescerem acreditando que não sabem, que não conseguem, que precisam de um homem para resolver qualquer coisa desse tipo. Isso não é acidente. É estrutura.
Agência Brasil: Não dominar esse tipo de habilidade deixa as mulheres vulneráveis a golpes ou alguma outra forma de violência, inclusive em seus relacionamentos com homens?
Jaque Conserta: Demais. Quando você não domina habilidades básicas de reparo, você fica dependente. E dependência sempre cria uma brecha para violência, abuso, manipulação ou controle, tanto em relacionamentos quanto com prestadores de serviço.
Essa vulnerabilidade aparece em vários níveis: financeiro, psicológico, relacional, físico e sexual. São comuns os relatos de profissionais que ultrapassam limites, assediam, intimidam. Quando uma mulher aprende a lidar com furadeira, chave de fenda, elétrica básica ou pequenos reparos, ela não está só aprendendo uma técnica ela está rompendo com um dispositivo social de dependência. A autonomia foi a primeira coisa que o patriarcado roubou das mulheres para que ele fosse possível.