Entidades de defesa dos direitos humanos e movimentos sociais estão denunciando a ameaça que uma proposta em tramitação na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) representa à atuação de defensores públicos. O Projeto de Lei (PL) Complementar 20/2025  foi apresentado pela defensora pública-geral do estado, Luciana Jordão, no último dia 9, e poderá passar com maior rapidez na Casa, já que, em sessão na quarta-feira (25), teve aprovado o regime de urgência.

Em carta pública, mais de 100 organizações afirmam que o PL, se aprovado, pode obstruir as atividades dos defensores públicos por causa da reforma que promoveria no fluxo de trabalho do órgão. O documento destaca que, com a proposta entrando em vigor, as decisões ficariam concentradas na figura de Luciana Jordão e que a criação do chamado “Grupo de Assessoramento de Demandas Estruturais” iria no mesmo sentido, de centralização, além de aumentar as chances de haver falta de transparência nas deliberações. Luciana Jordão foi designada para o cargo em abril de 2024.

O texto do PL reduziria significativamente a independência dos defensores públicos no exercício da função, que é, sobretudo, a de proteger parcelas particularmente vulneráveis da sociedade, como a população carcerária, familiares de vítimas de violência e letalidade policiais, imigrantes e refugiados e pessoas de baixa renda, que não teriam quem os representasse. 

"Na leitura da sociedade civil organizada, trata-se de um grupo de intervenção que limita o próprio acesso da população à Justiça", diz trecho da carta pública.

A Defensoria Pública é a ponte de denúncia para casos emblemáticos, como o Massacre de Paraisópolis. Como em outros casos igualmente graves, nesse, em que policiais militares utilizaram granadas em uma operação na favela, familiares das vítimas buscam garantir a responsabilização de agentes e dar visibilidade à violência do próprio Estado.

Com o PL, que teria sido protocolado por Luciana sem a devida consulta aos defensores, perderiam força os núcleos especializados do órgão, que são, ao todo, dez atualmente.

"Além do atendimento para pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, portanto, a Defensoria, por meio de seus núcleos, têm atuação estratégica em questões de grande relevância social. Seja por meio de debates sérios com a sociedade civil, especialmente com as pessoas diretamente afetadas, seja por meio da produção técnica qualificada, os núcleos têm legitimidade de acionar tribunais sempre que a defesa de direitos individuais, difusos e coletivos se fizer necessária", argumentam as entidades em outro trecho da carta.

Outro aspecto que seria alterado pela proposta em tramitação é o orçamento do órgão, que antes seria definido com o aval do Conselho Superior, que tem representantes eleitos dos defensores, e agora dependeria somente da anuência do Grupo de Assessoramento, "de modo que o controle e participação sobre a destinação dos recursos públicos também sejam enfraquecidos e, novamente, concentrando o poder de decisão na Defensoria Pública-Geral", acrescenta a carta pública.

"Além disso, a possibilidade de tornar virtuais ou híbridas as reuniões podem comprometer o Momento Aberto, único espaço de participação social no Conselho Superior da Defensoria Pública, que tem sido usado por pessoas atendidas pelo órgão, organizações da sociedade civil e servidores da instituição", alegam as organizações de defesa dos direitos humanos.

Conselho Superior 

O Conselho Superior é o órgão deliberativo da Defensoria Pública. Sua competência é fixada pela Lei Complementar nº 988 de 2006 e, entre outras atribuições, destacam-se: exercer o poder normativo no âmbito da Defensoria Pública; fixar parâmetros mínimos de qualidade para a atuação de defensores e defensoras públicas e aprovar o plano anual de atuação da instituição.

As entidades ressaltam a relevância da Defensoria Pública de São Paulo, criada em 2006. Elas mencionam que o órgão desempenha papel imprescindível, produzindo, inclusive, importantes pesquisas, estabelecendo parcerias e sendo um dos atores alinhados aos princípios da Constituição Federal de 1988, pautados pelos do Estado Democrático de Direito.

Em entrevista à Agência Brasil, o filósofo e comunicador Alderon Costa, que integra o Fórum da Cidade de São Paulo em Defesa da População em Situação de Rua, ressalta que tolher os defensores públicos é o objetivo porque são eles que estão na linha de frente, são os operadores do direito mais próximos da população, em especial, a mais fragilizada socialmente. Segundo ele, a maior preocupação é quanto às ações coletivas, "de maior relevância, que têm projeção maior".

Para Costa, é vital que se preserve o máximo de autonomia, até mesmo no âmbito orçamentário, tendo em vista que, em geral, os órgãos têm "um problema "genético" de não gozar de independência financeira, o que permite interferências e barganhas políticas em torno de suas atividades. Ex-ouvidor-geral da Defensoria Pública de São Paulo - cargo com mandato de dois anos -, ele explica ainda o contexto por trás do PL 20/2025.

Lembra que a proposta vem em um pacote maior, que engloba o Smart Sampa, sistema de monitoramento de crimes que se tornou vitrine da gestão municipal. O sistema, que utiliza o reconhecimento facial como principal recurso, foi anunciado como o maior do gênero na América Latina e gerou uma segunda iniciativa, que dá projeção a ele, o Prisiômetro, instalado no centro de São Paulo, para exibir quantitativos de prisões feitas pela polícia.

Perguntado sobre a possibilidade de o PL ter relação com os acontecimentos recentes na região conhecida como Cracolândia, onde há grande número de pessoas que fazem uso abusivo de drogas, Costa disse que pode haver conexão e destacou que hoje não há mais presença dos defensores públicos no perímetro da Luz.

"Insistimos que a Defensoria lute contra isso [o PL], porque, senão, vai ficar dependendo do estado e o estado é o maior violador de direitos, disso não tenho dúvida", declara.

"E, se não tem uma Defensoria aguerrida para enfrentar essas violações, quem vai defender o povo, as pessoas em situação de rua, as encarceradas, as mulheres que estão sofrendo violência, a maioria delas pobre?", indaga.

"Todo o atendimento, o cuidado que a Defensoria tem com a população está em jogo. Infelizmente, é um debate que não está sendo tão popular, e as pessoas que vão ser afetadas de fato por isso muitas vezes estão afastadas, não estão entendendo o perigo do que pode acontecer", complementa a pesquisadora Carolina Dutra Pereira, do Programa Sem Muros do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), referindo-se ao protesto organizado para esta sexta-feira (27).

A Agência Brasil questionou a defensora-geral, Luciana Jordão, sobre as questões denunciadas pelos defensores públicos e repercutidas pelas entidades na carta pública. Caso se pronuncie, esta matéria será atualizada. A reportagem também procurou a prefeitura de São Paulo e aguarda retorno.

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