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DPU denuncia ilegalidade da "gratificação faroeste" (Fotos: Agência Brasil)
A Defensoria Pública da União (DPU) denunciou a ilegalidade do projeto de lei (PL) que restabelece, no Rio de Janeiro, a chamada gratificação faroeste. Segundo a DPU, o PL estimula confrontos com mortes no estado, vai contra a Constituição Federal e viola decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A gratificação foi acrescentada ao PL 6.027/25, de autoria do próprio Poder Executivo, por meio de emenda proposta pelos deputados Alan Lopes (PL), Marcelo Dino (União) e Alexandre Knoploch (PL). Trata-se de uma premiação de 10% a 150% dos vencimentos de policiais que tenham se destacado por apreender armas de grande calibre ou de uso restrito, em operações policiais e por neutralização de criminosos, como diz o texto aprovado.
O PL foi aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) no último dia 23 e deverá seguir para a sanção ou veto parcial ou total do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro.
Apelidada de "gratificação faroeste", a medida não é novidade, vigorou no Rio de Janeiro entre 1995 e 1998. Ela foi suspensa pela própria Alerj por conta de denúncias de extermínio.
A DPU enviou, nesta segunda-feira (29), um ofício ao governador afirmando que o PL é ilegal. O documento foi divulgado nesta terça (30).
Segundo a DPU, além de ser inconstitucional, o projeto ainda sofre de vício de iniciativa, já que propostas que instituam gratificações para agentes de segurança devem ter iniciativa da respectiva chefia do Poder Executivo.
Segundo a Defensoria, o próprio termo neutralização, usado no PL é impreciso e por si só viola a dignidade da pessoa humana.
Pessoas não são neutralizadas, mas sim são mortas ou feridas, havendo exclusão, ou não (constatada após investigação policial e eventualmente de processos judiciais), da ilicitude em razão da necessidade de preservação da vida ou da segurança de pessoas inocentes, diz o documento, escrito pelo defensor regional de direitos humanos do Rio de Janeiro, Thales Arcoverde Treiger.
Pedido de veto
A denúncia feita pela DPU soma-se a do Ministério Público Federal (MPF) no Rio de Janeiro, que também considerou o PL inconstitucional com argumentos semelhantes. No dia seguinte à aprovação da lei pela Alerj, o Procurador Regional dos Direitos do Cidadão Julio Araujo, enviou um ofício ao Governo do Estado do Rio de Janeiro no qual elenca argumentos para que o texto seja vetado.
Segundo o documento, ao estimular esse tipo de atuação, há um evidente favorecimento do incremento da letalidade policial, ferindo o direito fundamental à segurança pública, previsto na Constituição de 1988. A medida também vai contra a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635 (ADPF 635), do Supremo Tribunal Federal (STF), conhecida como ADPF das Favelas. A ADPF estabelece o contrário da gratificação, a adoção de protocolos para a reduzir as mortes em operações policiais.
Além disso, o MPF afirma também que a gratificação não poderia ter sido proposta por deputado estadual, pois, de acordo com a Constituição, as leis que dispõem sobre a criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de remuneração são de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo.
Até a publicação da reportagem, o MPF diz que não recebeu nenhum retorno do governo do Rio de Janeiro.
Questionamento na Justiça
Para a professora de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora de políticas de drogas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Luciana Boiteux, caso o PL seja sancionado, ela pode ser questionada junto a Justiça.
Essa lei pode ser questionada via representação de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e pode também ser objeto de ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.
Segundo ela, o Rio de Janeiro não possui de fato uma política de segurança pública que seja efetiva e reduza a violência.
A resposta é sempre a lógica do fortalecimento da polícia, do armamento, das intervenções em favelas, do aumento do número de policiais. Obviamente, esse tipo de política não dá o resultado da redução da violência, diz. É uma lógica inconstitucional que vai produzir resultados negativos e que reafirma a cultura da violência, do extermínio, do genocídio, e que, portanto, não pode ser sustentada por uma lei, acrescenta.
Ela concorda que deve haver uma valorização dos servidores, mas que isso não pode ser às custas do incentivo a mortes. É claro que os policiais, os agentes de segurança pública, têm que ter uma remuneração melhor, mas isso tem que ser pensado dentro de uma lógica da administração pública, que envolve também investimento em outros setores, por exemplo, na educação, defende.
Plataforma política
Para o professor José Claudio Sousa Alves, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), a gratificação proposta no PL, não é apenas uma volta ao passado, mas também uma sinalização política de uma plataforma que tem sido defendida pela direita e extrema direita no Brasil, do uso da violência extrema como medida de segurança pública. Essa plataforma tem garantido vitórias eleitorais.
Eles perceberam isso como um grande cenário político e eleitoral, apoiado em uma plataforma imbatível, que é essa da violência, com o discurso do bandido bom é bandido morto, de que tem que aumentar a repressão, tem que matar, tem que operar de uma forma cada vez mais violenta, afirma Alves. Hoje essa gratificação se insere num projeto muito mais amplo aonde a estrutura estatal de segurança pública passa a ser um grande escoador de recursos, mas não só de recursos financeiros, mas de projetos políticos eleitorais, acrescenta.
Na prática, no entanto, Alves ressalta que o agravamento da violência não tem se mostrado eficaz no combate ao crime organizado e tem impactado diretamente a população, que sofre com suspensão de serviços, estresse rotineiro e até mesmo sendo ferida e morta em confrontos.
O discurso oficial de que é necessário fazer esse confronto, que para retirar barreiras nas favelas você tem que ir lá e confrontar, fazer guerra. As operações geram mortes, geram efeitos sobre a vida da população, serviços públicos interrompidos, sofrimento generalizado para população, morte de pessoas que estão naquele local sofrendo com essas operações, diz.
Posicionamento do governo
A gratificação faroeste foi acrescentada no PL proposto pelo governo. O projeto prevê a reestruturação do quadro permanente da Secretaria de Estado de Polícia Civil. A principal mudança prevista no PL é a redução de 11 cargos para sete. O PL também regulamenta os benefícios pagos aos agentes, como décimo terceiro salário, auxílio-transporte, auxílio-invalidez e adicional de atividade perigosa.
O texto, quando encaminhado ao governador Cláudio Castro, deve ser sancionado ou vetado em até 15 dias úteis. Em caso de veto, o PL volta à Alerj, que dará a palavra final. O plenário da assembleia pode derrubar o veto, deste que tenha maioria dos votos. Nesse caso, a lei é, então, promulgada pelo presidente da Assembleia Legislativa.
Procurado para se posicionar em relação ao PL, o Governo do Estado disse que ainda não recebeu da Alerj o texto final e reforçou que assim que for recebido, começará a contar o prazo de 15 dias úteis para que o governador sancione ou vete.
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