A Máscara Líquida: Sobre Filtros, IA e a Tirania da Curiosidade Alheia.
Do Real ao Surreal, porque usar Filtros e IA é apenas mais uma forma de Expressão.
Há, nas entranhas das redes sociais, uma curiosa epidemia de sinceridade seletiva. De um lado, exige-se verdade, autenticidade, "seja você mesmo". Do outro, ergue-se um exército de curiosos, fiscais da realidade alheia, cuja maior ocupação é apontar, com o dedo em riste, o uso de filtros e inteligência artificial nas fotografias que povoam seus feeds.
É uma ironia digna de nosso tempo: a mesma ferramenta que oferece um refúgio da pressão estética é, ela própria, alvo de uma nova pressão: a pressão para se confessar o artifício. Como se postar uma imagem com a pele alisada por um algoritmo, os olhos ampliados por um filtro, ou o cenário composto por IA fosse um crime de falsidade ideológica digital.
A premissa por trás do julgamento é, no mínimo, ingênua: a crença de que alguma vez as redes sociais foram um reino da pura e crua realidade. Desde os primórdios do Orkut, escolhemos o melhor ângulo, a luz mais gentil, o momento mais favorável. A fotografia, em sua essência, nunca foi objetiva; é um recorte, uma interpretação. Os filtros e a IA são apenas a evolução natural dessa vontade ancestral de compor uma narrativa sobre nós mesmos. São os pincéis digitais para os autorretratos da era pós-moderna.
Aqueles que acusam, muitas vezes sob o manto da "preocupação com a autoestima alheia", parecem ignorar um detalhe fundamental: a rede social é, por definição, um palco. É um espaço de performance, de projeção, de experimentação identitária. Ninguém está obrigado a subir nesse palco com a cara lavada e a roupa de ficar em casa. Se a tecnologia permite criar uma versão sublime, lúdica ou simplesmente mais confiante de si, por que não usá-la? A existência da ferramenta é, em si, um convite à sua utilização.
O julgamento, no fundo, revela menos sobre o "enganador" e mais sobre o expectador. Revela uma certa incapacidade de decodificar o medium. É como criticar um pintor por não usar as cores exatas da natureza: falta compreender a linguagem. A imagem filtrada não pretende ser um documento; é um mood, um desejo, um sonho acordado traduzido em pixels. Quem exige "verdade" em um ambiente construído sobre curadoria e aparências está buscando água doce no mar salgado.
Portanto, àqueles que se dedicam a desmascarar o óbvio, cuja curiosidade se transforma em acusação, talvez valha a pena um exercício de desapego. A vida digital é um jogo de representações. Alguns escolhem ser realistas, outros, surrealistas. A filtragem da imagem não é uma mentira sobre quem se é, mas muitas vezes uma pista sobre quem se gostaria de ser, ou sobre a atmosfera que se deseja transmitir.
No grande teatro das redes, nem tudo é real, e está tudo bem que assim seja. A obrigação de autenticidade total é um fardo que nenhum usuário assinou ao criar sua conta. Afinal, se a realidade fosse tão perfeita e fotogênica assim, não haveria tanta necessidade de editá-la. A crítica, no fim, é apenas um ruído de fundo – um lembrete barulhento de que alguns ainda confundem o palco com a plateia.
Usa quem quer. Para se sentir mais confiante, para brincar com a identidade, para criar uma atmosfera ou simplesmente porque sim. É um direito digital, uma expressão pessoal tão válida quanto qualquer outra.
E quem não quer, não julge. Porque a vida alheia não é um tribunal de veracidade, e o feed não é um documento notarial. A ânsia por expor o "artifício" diz mais sobre a necessidade de controle de quem julga do que sobre a suposta "falsidade" de quem edita.
No final, a única regra não escrita que vale a pena seguir é a da soberania individual: cuide da sua própria imagem, do seu próprio perfil, e deixe que os outros administrem o deles em paz. A beleza do mundo digital está justamente nessa pluralidade – onde o real, o idealizado e o fantástico podem coexistir, cada um no seu quadrado.
E aí, qual é a sua opinião?