Santa Leocádia: a fazenda que virou símbolo político e palco de batalhas na Guerra do Contestado
Localidade às margens do Iguaçu, hoje pertencente a Canoinhas (SC), foi fundada como expressão de domínio territorial e resistiu à violência de um dos maiores conflitos da história do Brasil
A pacata localidade de Santa Leocádia, situada à margem esquerda do rio Iguaçu e pertencente ao município de Canoinhas (SC), guarda em suas origens uma história marcada por acontecimentos decisivos — entre eles, episódios diretamente ligados à Guerra do Contestado.
No início do século XX, quando Paraná e Santa Catarina ainda disputavam o domínio sobre as terras à margem esquerda dos rios Negro e Iguaçu, Santa Leocádia nasceu como fazenda, porto fluvial e símbolo político.
A história da localidade começou em 9 de dezembro de 1905, com a fundação da colônia pelo coronel Arthur de Paula e Souza — comerciante, proprietário de vapores (embarcações fluviais) e importante liderança política em União da Vitória (PR). A fazenda recebeu o nome em homenagem à avó do coronel, Leocádia de Paula Xavier, e havia sido adquirida de Maria Dionísia de Jesus em 1897.
Símbolo político e rota fluvial
Em meio à disputa territorial, Santa Leocádia funcionava como expressão do princípio jurídico do uti possidetis — o direito de posse pelo estado que efetivamente ocupasse o território. A fazenda logo ganhou ruas nomeadas, área doada para igreja e cemitério, além de um pequeno porto fluvial que integrava a rota dos vapores que cruzavam o Iguaçu e seus afluentes.
Arthur de Paula era proprietário de embarcações notáveis, como o “Victória” e o “Iguassu”.
A presença do coronel no “lado catarinense” do rio não era apenas econômica. Em 1906, Santa Leocádia foi elevada a distrito policial de União da Vitória, tendo o próprio Arthur como comissário. Poucos anos depois, em 1911, o Paraná criou o distrito policial do Timbó (hoje Irineópolis). Em 1914, o governo paranaense fundou o município do Timbó, unindo os dois distritos — um gesto político de afirmação de autoridade em plena zona contestada. Na prática, Santa Leocádia operava como “guarda avançada do Paraná” na margem esquerda do Iguaçu.
A Guerra do Contestado e a violência que chegou ao Iguaçu
Com o início da Guerra do Contestado (1912–1916), deflagrada em Curitibanos, Taquaruçu e Caraguatá, o conflito logo alcançou o eixo Canoinhas–União da Vitória. Na região, circulavam ex-combatentes da Revolução Federalista (1893–1895), o que contribuiu para o alistamento de moradores já experientes na arte da guerrilha. Santa Leocádia, então com quase uma década de existência, tornou-se alvo dos rebeldes.
Em junho de 1914, moradores abandonaram a localidade diante das ameaças dos chamados “fanáticos”, como a imprensa denominava os revoltosos. Em 15 de junho, a fazenda foi atacada: Zacharias de Paula, filho do coronel, foi baleado no tórax, e um trabalhador morreu. Em julho, novo episódio: rebeldes dispararam contra o vapor Palmas, ferindo uma mulher e uma criança e deixando a embarcação cravejada de projéteis.
A violência escalou em setembro de 1914. Após os ataques às estações de Calmon e São João dos Pobres (atual Matos Costa/SC), o capitão Mattos Costa, do 16º Batalhão de Infantaria, foi morto em emboscada. O Exército Brasileiro, então, reorganizou sua estratégia, dividindo as tropas em quatro colunas para cortar os suprimentos dos revoltosos. Canoinhas tornou-se sede da Coluna Norte.
Mesmo sob presença militar, Santa Leocádia voltou a ser atacada em 8 de setembro. Rebeldes cortaram as comunicações e investiram contra o pequeno destacamento que defendia a fazenda. A resistência foi comandada pelo sargento Saturnino Pinto de Andrade, eternizado pela crônica militar como “o bravo de Santa Leocádia”.
O desfecho trágico
As semanas seguintes selaram o destino da localidade. Em 8 de outubro de 1914, durante novo ataque, Arthur de Paula e Souza foi assassinado, e seu corpo queimado junto à casa da fazenda. As edificações foram incendiadas, parte do gado roubada e os moradores que não conseguiram cruzar o rio foram levados como prisioneiros pelos rebeldes.
Em 13 de novembro, uma nova investida destruiu outras 16 construções, incluindo a serraria. Os prejuízos somaram dezenas de contos de réis e incontáveis perdas humanas. Pouco tempo depois, jornais registraram que “não há uma viva alma” nos distritos de Timbó e Santa Leocádia: a população e as autoridades haviam recuado para União da Vitória.
A guerra se encerrou em 1916, e o Acordo de Limites entre Paraná e Santa Catarina, firmado no ano seguinte, definiu as fronteiras atuais. O Paraná extinguiu o município do Timbó, e Santa Leocádia passou definitivamente a integrar Canoinhas (SC) — condição que mantém até hoje.
Memória e identidade
Mais de um século depois, Santa Leocádia ainda guarda o nome e o peso de sua origem — muitas vezes desconhecida até mesmo por seus próprios moradores.
Resgatar sua história é, acima de tudo, compreender as raízes da região e os reflexos de um dos conflitos mais trágicos da história brasileira: a Guerra do Contestado.